quinta-feira, 24 de outubro de 2013

Marginal

Se eu inventariasse tudo o que tenho, e como em um transe pré-pago me livrasse de quase tudo que é rico e que é médio para conquistar as terras congelantes de meus anseios...

Quem pagaria por isso? Alguém ousaria ter um pedaço do que comprou meu último ato ocidental?

Nobre causa, pobre alma.

"Tem que acontecer alguma coisa, meu bem", disse o bicho que não podia ficar parado. Agora me sinto em uma cela de uma prisão que conheço até demais. Só que meus livros secaram com as páginas turvas, inexpressivas e frágeis demais para fazer deles pano de fuga. Minhas gravações precisam de energia elétrica para dançarem na minha cuca legal.

O par de botas taylor-made nunca me sorriu. São botas sisudas, de um peso que suporta somente a caminhada dos bravos. Couro, ferro e borracha de alta densidade costuram-se para dar cabo à derradeira trama do destino.

Serei capaz de começar? O norte já magnetizado em meus pés treme e ameaça.

Balada n.º 4, em Fá Menor, Opus 52.         Eu já deveria conhecer os perigos intensos do fá menor.

E no Palácio Real de Warvell ouve-se acordes. A introdução é feita, qual seja:

"Seu olhar era mais espiritual que sonhador; seu doce e fino sorriso jamais se tornava amargo; seu nariz curvo, expressivo, acentuado; sua estatura, elevada; seus membros, frágeis. Os gestos eram graciosos; o timbre da voz, um pouco surdo, às vezes abafado. Seu andar tinha tal distinção e seus modos um tal caráter superior que involuntariamente se o tratava como um artista."

Tenho fome. Estou só por alguns minutos e deveria ter guardado algum pequeno prazer para essa rara ocasião.

"Não, o som dos pássaros é maior", e cessou a escrita marginal.

sexta-feira, 18 de outubro de 2013

A revista provou, o jornal confirmou


                                                ...tem um micróbio que faz miolo derreter.

segunda-feira, 14 de outubro de 2013

Deleites indizíveis



Um trecho de uma carta de 16 de julho de 1903, escrita por Rilke para seu famoso jovem poeta, caiu aberto na mesa da sala, lugar de pouco convívio. Aqui vai o pedaço que veste a ocasião, caros colegas de condição:

..."A idéia de ser um criador, de gerar, de formar" não é nada sem a sua contínua e grandiosa confirmação e realização no mundo, nada sem o consenso mil vezes repetido por parte das coisas e dos animais. E só por isso o seu gozo é tão indiscritivelmente belo e rico, porque é feito das recordações herdadas da geração e da gestação de milhões de seres. Em um pensamento criador revivem milhares de noites de amor esquecidas que o preenchem com altivez e elevação. Assim, aqueles que se juntam durante as noites e se entrelaçam em uma volúpia agitada fazem um trabalho sério, reúnem doçuras, profundidade e força para a canção de algum poeta vindouro que surgirá para expressar deleites indizíveis. 


13 RPM (ou devaneios e conclusões sacados de um toca-discos)

É chegada a hora da grande pausa, necessária para virar o disco. A novidade da primeira face gira rumo ao seu fim, e encontro meu nome no lado B. O título do álbum foi impresso à ferro quente na última canção da face oculta, agora revelada em tom maior e em graves e agudos cristalinos.

Não pretendo descrever a arte do álbum, pois o que escuto agora chegou sem capa nem contracapa, e com minhas mãos desenhei e escrevi os movimentos do entendimento. Tão pouco importa a estética do que é plano, e que mesmo com alguns scratchs, a agulha risca sem sangrar e faz durar mais do que alguns minutos o que está cronometrado.

A outra face também chegará ao seu fim, não se pode negar tal evidência. Todos os lados acabam com algum ruído seguido de silêncio. E quando o disco acaba, o que vale mesmo é manter a vitrola rodando bonita. Discos podem ser clássicos, de novela ou intocáveis, e jamais irão tocar sozinhos.

Estendi a mão e saquei a bolacha de 12" da pick-up, e o prato segue girando. Tudo bem, agora é hora de usar o fino linho e a nobre mirra para o que vai além dos lados de um disco ou da estória. De tanto rodar em  comércios velhos e cheios de limbo, de caminhar tardes inteiras à procura de alguma raridade escondida, é chegado o momento da apreciação da busca, que encontrou sem saber o disco mais vivo dessa era de passos largos e pausas longas.

(com a ajuda de Raulzito, Philips 346 e o final de semana que ainda não terminou)